As pistas autorais que os arquivos guardam
São Paulo, 2 de outubro de 2020.
Como vai por aí?
Por aqui, vou começar com um clichê, porque se tem uma coisa que é subestimada é o lugar-comum - aquelas falas que a gente percebe saindo da boca da gente ou de alguém e, por serem meio desgastadas pelo uso, nem presta muita atenção. O tema clichê de setembro (no hemisfério sul) é a primavera. E como eu amo primavera! Tempo de brotar, florescer, fertilizar, florir! O anúncio do fim do inverno friorento e cinzento e da chegada de dias mais coloridos. E acontece todo ano - ciclicamente. Já começou a renascer algo por aí?
Re-nascer... Se tem um prefixo que a função autor valoriza é o "re-", que, na nossa língua, soma às palavras os sentidos de repetição, reforço e recuo. Digo a função autora, pois a escritora em si às vezes cisma nessa história de que produtividade e progresso é seguir em frente, focar no que tem pra fazer, um olho no presente e outro no futuro, dar os próximos passos, antecipar-se, na ilusão do controle do que vem depois, tirar da frente, fazer-fazer-fazer.
Mas a autoria como instância da escritura (que leio aqui como uma metáfora da vida) não é movimento só pra frente, de avançar, progredir e evoluir. Muitas vezes, a gente vai dando voltas na própria espiral de memórias e conhecimentos para reforçar as bases antes de dar um passo novo, à frente. Às vezes as voltas teimosas e repetidas deixam a gente tonta e desorientada, outras vezes elas são manobras de retorno estruturadas e assentadas sobre o que já existia. E essa segunda qualidade de volta na espiral pode trazer pistas únicas da nossa escritura/vida singular. Aliás, se tem algo que o século que foi nosso berço (se você nasceu depois de 2001 não me conte, rs) trouxe foi o reforço destas perguntas sobre nós mesmos: quem é o ser que cria? quem é o ser que escreve? quem é que vive? - não à toa foi nele que o pessoal da linguagem e da filosofia desenvolveu os conceitos de recursividade (nos idos dos anos 50) e reescritura (lá pelos 80), que são bases para a questão da autoria até hoje.
(parêntese rápido pro tecniquês)
Recursividade: o movimento da volta da espiral ilustra bem isso - trata do processo de repetir sem nunca tocar o ponto de origem, avançando progressivamente a partir do resultado da volta anterior.
Reescritura: quando um escritor transforma intencionalmente um texto-base, produzindo, por exemplo, pastiches, paródias, tradução...
(simplificar isso é bem difícil pra mim, mas vou mandar assim mesmo porque acho importante. Qualquer coisa, a gente continua esse papo...)
Esses dois "res" fazem pontes importantes para aprendermos sobre quem somos escritores e autores de nossas vidas:
- que questões nos fazemos?
- que temas se repetem em nossa jornada?
- o que vivemos colocando e riscando da nossa lista de tarefas?
- que livros, arquivos, álbuns, cadernos guardamos? E quais descartamos ou doamos?
- que músicas gravamos e tocamos até cansar?
E depois dessa pesquisa material, a pergunta: como reforçamos e rearticulamos o que aprendemos no que oferecemos ao mundo?
"A recursividade faz o papel de um elo que impedem que os conteúdos se percam ou se dispersem pelo excesso e pode ser o suporte da geração do sentido, de sabermos o porque de determinado tema e como ele se encaixa no todo, pois o conhecimento deixa de ser útil quando é somente abstrato e não fomenta uma prática que possibilite a mudança daqueles que fazem uso dele, não produza algo no mundo real." (Káritas Ribas, 2015)
Recursivamente esse mês retomei os estudos sobre Barthes (sim, o cara da maionese da carta anterior, crítico literário francês e tal). Me matriculei numa disciplina da universidade onde estudei como aluna especial, graças ao mundo on-line. Fiz a primeira versão dessa matéria há 10 anos, com a mesma professora, com alguns alunos que se repetem nesta turma... A diferença é que eles já não são os mesmos, o que a professora estudou já mudou muito com os manuscritos do autor que ela encontrou nos últimos anos, o meio de aprendizado mudou, tudo mudou - incluindo eu mesma. E tá sendo uma aventura interna isso (já que a minha aventura externa teve que ser adiada).
Resumindo, queria dizer que nossos arquivos trazem pistas. Eles sabem quem você era nas primaveras passadas. E esse "quem foi" não está desgastado pelo tempo de uso, talvez nem precise de algo externo novo. Pode ser que esse seu "fui" apenas ainda não tenha se repaginado, regenerado ou atualizado. Acredito que articular o que temos hoje com o que já aprendemos, vivemos e conhecemos antes, com profundidade, é o que pode trazer o novo capítulo da nossa história. Seu arquivo está aí, cheio de sementes. Vai plantar?
Com carinho,
Carol