Em torno de propostas para o fazer autoral
São Paulo, 29 de março de 2021.
Como estão você e os seus? Espero que estejam seguros e buscado fortalecer o que lhes traz esperança para atravessar estes tempos. Não quero tratar desse tema aqui, mas também não quero ignorar o fato de que muito provavelmente você recebe esta carta num momento delicado. Então desejo que esta leitura seja um espaço de respiro - como é pra mim sentar para escrevê-la.
Esta carta conta do Março em que celebro o aniversário da Incipit. 5 anos desde 23/3/16. Gosto de recontar essa história alivanhando como tudo começou com algo do agora, que traz um quê dos desejos pro daqui em diante. Aniversário é sempre um ponto de encontro no tempo, se a gente quiser. A Incipit nasceu como um projeto, uma proposta pra mim, e de mim pra fora, de interseccionar os mundos por onde eu circulava - o acadêmico, o editorial e o educacional. Proposta é palavra típica dos inícios: lançar pontos de partida, com intencionalidade, mas sem o contorno do resultado que poderia ter - um deles foi o nome do conceito e marca Comunicação Autoral...
A Incipit nasceu com um projeto de trazer a literatura pra pensar a vida (e o que fazemos nela). A série de conferências que Ítalo Calvino preparou para as Charles Eliot Norton Poetry Lectures, de Harvard, no ano letivo de 1985-86, Seis propostas para o próximo milênio - Lições americanas, formaram um grande degrau de criação e expressão pro meu fazer autoral até aqui. São as linhas e entrelinhas desse livro inacabado que me influenciaram profundamente a pensar literatura e vida. Isso porque o escritor escolheu temas pra falar de uma comunicação poética, o que lhe tirou o peso de falar "só" de literatura e lhe deu uma certa liberdade nesse campo. Também porque é um livro inacabado (infelizmente, pelo falecimento do escritor antes de realizar as palestras), o que de alguma forma deixa um certo mistério no ar, além do espaço pra continuar a conversa, já que "termina" em processo. E também por outras histórias ligadas a Ítalo Calvino que vou contando aos poucos que é pra esta prosa continuar...
Bom, nesse livro ele propõe os seguintes temas para a literatura do atual milênio que vivemos: Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade, Consistência (este último, não escrito). Naquela época já havia quem questionasse a existência do futuro do livro como objeto, por conta das novas tecnologias todas. Cá estamos nós, entre leitores digitais, livros impressos (em papel pólen, então...<3), instabooks e outros apps para criadores de estórias. Entre escritas e multimídias, salvaram-se todas as histórias. Mas as Propostas não foram mais as mesmas...
No fim do ano passado, encontrei um latino-americano que dialogou direto com o escritor italiano. Trouxe numa conferência de 2000, publicada no ano seguinte, "Três propostas para o próximo milênio e cinco dificuldades" - era o argentino Ricardo Piglia. Mais perto da gente - temporal e territorialmente - as propostas de Piglia mexeram comigo. Por 2 motivos: primeiro por escancarar a falta de diversidade de minhas referências (ainda predominantemente europeias); segundo por apresentar propostas afirmativas e também dificuldades desde a literatura até a sociedade:
"E se dispusermos a imaginar as condições da literatura no futuro dessa forma, talvez possamos também imaginar a sociedade do futuro. Porque talvez seja possível imaginar uma literatura primeiro e depois inferir a realidade que lhe corresponde, a realidade que esta literatura postula e imagina." (Piglia, 2001)
São de Piglia (2001) estas propostas:
1 - "Noção de verdade como horizonte político e objeto de luta. [...] Existe uma verdade da história e essa verdade não é direta, não é algo dado, surge da luta e do confronto e das relações de poder";
2 - Noção de limite e de deslocamento. "Sair do centro, deixar que a linguagem fale também no limite, no que se ouve, no que chega do outro."
3 - "A clareza como virtude." Articular com clareza linguagem e nosso estilo único, sem cair em jargões que ninguém entende.
E as 5 dificuldades vêm justamente de como escrever a verdade. Aí ele cita outro escritor, Brecht, e resume:
1- "o valor de escrever a verdade"
2 - "a perspicácia de descobri-la"
3 - "a arte de manejá-la"
4 - "a inteligência de escolher a quem se destina"
5 - e "a astúcia de saber difundi-la" (Piglia, R. "Tres propuestas para el próximo milenio (y cinco dificultades)". 2001, p. 11-21, tradução livre minha)
Em 2000, o escritor estava levantando esse problema em torno da escrita e comunicação da verdade. Sem pretender que existisse uma Verdade absoluta, ele trata desse conceito de verdade na literatura - forma e conteúdo de ficção que podem revelar e criar um tanto do que se apresenta no nosso viver, na realidade. Se a linguagem cria mundos, é fundamental estarmos cada vez mais atentas e atentos para o modo como recebemos, interpretamos e geramos conteúdos e conhecimentos - seja ficcional, poético, informacional, educacional, relacional... Que verdades estamos criando e comunicando no mundo? Que verdades ficam para as gerações que estão chegando e sendo educadas pela nossa? Sob que referências estamos construindo nossas verdades? - tem sido algumas perguntas que estão vivendo aqui.
É do mesmo Ricardo Piglia a defesa de que "a literatura permite pensar o que existe, mas também o que se anuncia e ainda não é." E intenciono este lugar para a Incipit Hub desde aqui até o que virá: ser espaço para refletir o que já foi, observar o que é (ou o que se apresenta) e criar contornos possíveis para o que ainda não é. Cultivar projetos autorais tem a ver com isso. Em outra carta eu volto com novas propostas e perguntas que estão surgindo por aqui com a Comunicação Autoral.
Agradeço a quem veio, vem e virá me contar sua história na Incipit. Por tantos encontros que também vão me mostrando o que esta proposta e empresa pode ser. A você, que está aqui, cultivando e acreditando junto neste modo de fazer autoral. Agradeço!
Me conta se essas propostas todas movem também as suas em particular?
Com carinho,
Carol
também entrevemos estas propostas
Adélia Borges, tecelã da cultura artesanal brasileira (entrevista com Adélia Borges, realizada com Ciça Costa para a série Por Artesanias Brasileiras)
Sérgio Haddad e o diálogo em Paulo Freire (entrevista com Sérgio Haddad, realizada com Michelle Prazeres para o Projeto Humanizar a Comunicação)