“Quero caminhar.” - foi a resposta mais honesta que dei pra um amigo que perguntou o que eu mais queria de uma viagem que fiz esse ano. A sinceridade radical que a intimidade permite foi surpreendente até pra mim: não dizer nada útil, edificante ou transformador pra justificar um sonho de longa data me acalmou.
É curioso como as perguntas sobre viagem geralmente passam por pra onde, como, com quem se vai ou o que vai fazer lá. São todas legítimas e práticas. Mas aquela pergunta “o que você mais quer disso” me levou pra única resposta que eu tinha pra dar com certeza e vontade. E só essa resposta rendeu uma conversa inteira: caminhar anônima, estrangeira, sozinha, junto com alguéns, por lugares que meus pés conheceriam pela primeira vez, mapear caminhos sem aplicativos, desorientada, gravar paisagens com a memória…
Se parar pra pensar, caminhar é uma das formas de descansar que nos restaram, além de dormir. É quando estamos longe do celular, distantes do mundo inteiro na palma da mão, com todos as suas facilidades e suplícios, e perto só do que os pés alcançam. Andar por andar é das inutilidades mais felizes. Porque até a escrita à mão, que era uma das minhas práticas de descanso, foi cooptada pelos valores da utilidade: escrevo listas para não esquecer tarefas e coisas, registro reuniões no papel pra me ajudar a memorizar e organizar pensamentos, derramo palavras emocionadas no caderno para me ajudar a elaborar e tentar me ler de “fora”… a utilidade acaba caindo na obrigação, no “tenho que fazer isso” porque sei os benefícios que tem. Faço então pelo benefício que gera depois, não pelo prazer de fazer.
E sinto que é no prazer de fazer algo o descanso habita. Um fazer sem para quê. Como caminhar.
“Caminhar não é um esporte. Pôr um pé na frente do outro é uma brincadeira infantil. Quando caminhantes se encontram, não se fala de resultado, não se fala de números: um diz ao outro que caminho tomou, que trilha oferece a paisagem mais bonita, que vista se contempla de determinada parte mais elevada.” - Frédéric Gros (p. 21)
Sem destino, estamos abertas a encontrar coisas ao acaso (serendipidade que fala). E foi passeando os olhos pela estante de uma amiga numa das andanças no meio da viagem que encontrei o Caminhar, uma filosofia, do Frédéric Gros. Um livro que deu um contorno real pra algo que percebia na prática da perambulação:
“…caminhando, não se vai ao encontro de si mesmo, como se se tratasse de se redescobrir, de se libertar das velhas alienações para reconquistar um eu autêntico, uma identidade perdida. Caminhando se escapa à própria ideia de identidade, à tentação de ser alguém, de ter um nome e uma história.” (Gros, p. 78)
O filósofo francês descreve os caminhantes, especialmente escritores, como Nietzsche, Rousseau, Thoreau, que faziam das andanças uma prática paralela e fundamental para a escrita acontecer. Herdeiros dos peripatéticos (a escola do Aristóteles, que ensinava ao ar livre na Grécia Antiga).
Mas… e as mulheres? E as escritoras? Por onde andavam será? É aqui que minha viagem imaginária começou antes da real.
Com a imagem da flâneuse, tão bem narrada pela Lauren Elkin. Até então, eu só conhecia as histórias de flâneurs, artistas homens que andavam sem rumo meio que pra nutrir sua criatividade e se refugiar na multidão (Charles Baudelaire e Walter Benjamin fizeram o termo ser palavra da moda no séc. 19). Nem me atrevo a resumir a história dessa palavra francesa que a Lauren conta tão bem:
“Do verbo francês flâner, o flâneur, “aquele que vagueia a esmo”, nasceu na primeira metade do século 19, nas passages de Paris recobertas de aço e vidro. […] Figura de privilégio e ócio masculino, com tempo e dinheiro e nenhuma responsabilidade imediata que demande sua atenção, o flâneur entende a cidade como poucos, pois memorizou-a com os pés.” (Elkin, Flâneuse, 2022, p. 13)
Em Flâneuse, a escritora nova-iorquina traçou praticamente uma (auto)biografia da versão feminina do caminhante artista que foi invisibilizada do cânone literário e da história: “Mas, se nossa presença é tão chamativa, por que fomos excluídas da história das cidades? Cabe a nós devolver nossa presença ao quadro, de todas as maneiras possíveis.” (Elkin, p. 24)
E ela se coloca presente no livro, em sua escrita a pé, que narra a si caminhando por Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres, e seus encontros com pessoas e outras flâneuses que ainda não reconhecia dessa forma, como Virginia Woolf, Sophie Calle, Agnes Varda, Georges Sand… Num só livro, ela entrega itinerários e uma biblioteca inteira de referências a investigar. Além da resposta poética do que se quer com as andanças:
“Andar é mapear com os pés. […] Andar ajuda me sentir em casa. […] Ando porque andar oferece - ou restaura - uma sensação de lugar. […] Ando porque, de certa forma, é como ler. Ficamos inteirados dessas vidas e conversas que não têm nada a ver conosco, mas que podemos entreouvir. Às vezes o ambiente está superlotado; às vezes as vozes são altas demais. Mas há sempre companhia. A gente não está só. A gente anda na cidade com os vivos e os mortos, lado a lado.” (Elkin, p. 33)
Já é batida a relação do caminhar com a escrita como metáfora e como prática. Mas a Flâneuse amplia muito os horizontes do lugar-comum: por ir além do “modo de nos mover no espaço”, por reivindicar a liberdade de movimento, por ocupar espaços e páginas, também dando visibilidade a outras pessoas, por criar seu território individual no coletivo, desviando de supostos atalhos.
“A flâneuse existe, sim, existe sempre que nos desviamos dos caminhos que nos foram estabelecidos e vamos em busca de nossos próprios territórios.” (Elkin, p. 34)
Quero caminhar. E escrever como quem perambula pela página: sem saber onde o texto termina e apontando o que acho bonito pelo caminho. Como esta última citação da Lauren:
“Onde virar, que trajeto seguir; ir por uma rua não é ir por outra, escrever sobre alguma coisa é ignorar um monte de outras que precisamos deixar de fora para que o texto seja legível. Cada frase é uma encruzilhada.” (Elkin, p. 309)
Escrever a pé é escrever de mãos dadas.
Bônus track
pra quem gosta de caminhar com voz e som ao pé do ouvido, estas playlists resumem as referências desta escrita a pé.
Carol, este texto é maravilhoso e retrata bem como devemos escrever nossas histórias, inclusive com o simples caminhar ou o complexo viajar. E, principalmente, desligando-se das alienações atuais. O poeta já dizia: "Caminhar é preciso...". Será que estou confundindo os verbos? Bom, não importa a forma e o tempo, desde que vivamos.