Identidade não é propriedade
São Paulo, 4 de agosto de 2020.
Oi! Espero que esta carta (atrasada) chegue em boa hora pra você.
Começa o segundo semestre de um dos anos mais esquisitos que já vivemos... Gosto dessa palavra porque é daquelas cujos usos multiplicaram seus significados: a bagagem do latim "exquisitus" trazia o sentido de "escolhido com atenção e cuidado", "distinto", que se ramificou nos sentidos de "requintado/precioso/delicioso", no uso comum em espanhol (exquisito) e em francês (exquis), e também "estranho/desagradável", em português. Terreno fértil esse da palavra esquisito, não é?
Trago essa palavra pra gente retomar a conversa da última carta sobre interlocução e sobre a palavra como território comum entre locutor e interlocutor (como dizia Bakhtin). Comentei como a palavra pode ser chão para relações de nós conosco, com os outros e com o mundo, e como uma interlocução qualificada oferece recursos para identificar/criar palavras que nos representem e nos apoiem a estabelecer relações autorais. Mas você pode ter ficado com uma questão: "Quando a palavra se torna minha?" ou "Como reconheço meu território de palavras próprias?"
E aqui trago o conceito da identidade verbal. Ele é mais conhecido no universo das marcas, mais especificamente do branding, para indicar os elementos linguísticos e narrativos que as representam, por exemplo: nomes (naming e product naming), tom de voz, histórias (storytelling)... Nesse contexto das marcas, esse conceito apoia a construção de criações. Por aqui, gosto de adaptá-lo para apoiar os processos de autoria e identidade. Acredito nessa identidade que as palavras refletem como um processo de tornar as palavras próprias, por meio de uma ordem e uso singulares.
Palavras próprias não são propriedade privada. É interessante lembrar neste ponto que o Direito de Autor surgiu como necessidade com a invenção da imprensa lá no século 15, que ampliou a possibilidade de reprodução de obras impressas. Antes disso, as criações intelectuais eram, sim, protegidas por direitos de propriedade e, portanto, transformavam-se em propriedade material. Para que nossas palavras detenham o direito de propriedade intelectual hoje, é preciso que a forma e o conteúdo estejam organizadas de forma singular e divulgadas a público. Resumindo: identidade verbal não é propriedade, mas também não é terra de ninguém, porque é a base para construção dessas propriedades intelectuais todas, sendo a autoria uma delas.
A autoria está na materialidade. Está na forma que damos quando entregamos nossa obra pro mundo, seja ela uma patente de invenção, uma marca, um desenho, um produto, um artigo, um negócio, um vídeo... e o "mundo" é o olhar público, não o que fica engavetado, ao que ninguém ou só alguns olhos escolhidos têm acesso. Além disso, hoje nós, criadores, enfrentamos também as imposições do mundo digital, cuja materialidade difusa acaba gerando uma série de "apropriações" indevidas dos terrenos alheios sem citar fontes de pesquisa e inspiração. A era digital de compartilhamento problematiza ainda mais a questão da autoria, pois o território virtual, como diz o Byung-Chul Han, "não pesa, não cheira, não opõe resistência, você desliza o dedo e pronto". Seguir criando de forma autoral hoje pra mim é um exercício de resistência e fluência em tempos líquidos.
Para cultivar autoria hoje (especialmente neste campo digital), me aproprio do conceito de jardim que esse filósofo sul-coreano usa para falar sobre a beleza (em seu A salvação do belo, 2015). Gosto de pensar nossa identidade verbal como jardim de palavras que queremos semear, mantendo contato com a nossa realidade material, entrando em atrito com a raiz das palavras, com o peso de sua bagagem etimológica, com os sentidos que têm em nossos usos cotidianos e também com o significado que queremos cultivar através delas.
Apropriar-se de palavras não é sinônimo de cópia irrefletida, nem de repetição de modismos, mas de observação, encontro e cultivo de um território de palavras que orbitam e mobilizam nosso ser e nossos fazeres em relação com o mundo. A identidade verbal não está nem só no outro que vai receber a mensagem, nem só em nós mesmas/os, mas no espaço entre esses dois e o contexto. E, então, como você têm cuidado desse espaço de cultivo de suas palavras? Que frutos você têm colhido? Como você tem visitado outros jardins e convidado as pessoas a visitarem o seu?
Com carinho,
Carol