O papel autoral hoje e no aniversário da Incipit!
São Paulo, 23 de março de 2020.
Olá!
Como você está percebendo e atravessando este momento? Sabe, eu quero muito começar esta carta te contando com alegria que a Incipit Hub completa 4 anos hoje, mas não dá pra dizer que o que começamos a viver neste março não afeta o que escrevo aqui. Então começo incluindo esse tema na roda, não pra falar dele, mas a partir dele. Achei curioso retomar a segunda carta e notar que falava sobre como a autoralidade está no nosso fazer e a nossa voz autoral emerge da lentidão, do tempo da contemplação. E essa última semana mexeu bastante com nossa relação com o fazer e o tempo, não é mesmo? Independente se você já era autônoma/o e trabalhava remotamente, se começou a trabalhar a distância agora, se está dividindo seu tempo entre home office e homeschooling dos filhos, se seu trabalho não permite que você faça quarentena, se foi impedido de trabalhar, se está passando este momento só, ou com alguém(ns)... – todos fomos profundamente afetados nos mais diversos graus.
Essa crise que se instaurou no mundo e os desdobramentos que tenho acompanhado nas relações com as pessoas, nos negócios e nas mídias, me trouxe forte a questão do papel autoral. Podemos mobilizar vários papéis na vida em relação ao que nos afeta – nossos papéis são vivos, logo, móveis e impermanentes. O autoral não é diferente. Acredito na autoralidade como fazer refletido e atitude propositiva em relação ao que nos cerca e nos atravessa. Daí a pergunta do início da carta não ser “como você está”, mas o que você vê e como se move neste contexto atual.
Viver no desafio e na movência do papel autoral tem sido o maior aprendizado desses dois pares de ano na Incipit. Parece pouco no tempo cronológico, mas aqui dentro foi tanto! Há pouco mais de cinco anos, as expressões da vez eram “protagonismo” e “ser a sua melhor versão” (que abriram espaço para “empoderamento” também). Eu acompanhava uma série de profissionais apoiando e fazendo movimento de transição de carreira em busca de felicidade e sentido. Já estava instaurada a crise de sentido no mundo do trabalho e “fazer o que ama” e “escolher a própria vida” passaram a ser temas atraentes. Esse discurso me seduzia e me fazia querer entender por que eu era uma versão capenga de mim mesmo fazendo o que amava. Sim, tive o privilégio de escolher a formação em Letras por amor, sem ter clareza da profissão-alvo, mas com uma força nítida de que não poderia fazer outra coisa que não fosse com palavras. No percurso a partir de 2004, sem alvo, quis experimentar ofícios sem pular de emprego em emprego. Então sempre tive planos A, B, C de experimentação. Comecei com um papel “fixo” em pesquisa e “móveis” em assessoria acadêmica, tradução, revisão, edição, aulas de francês; fui pra outro período longo fixo em editoração que se moveu internamente para tecnologias educacionais e EaD, sem perder de vista os projetos móveis em educação e literatura. Depois do processo de coaching para entender qual era o meu problema, por que não me sentia protagonista e, por isso, me sentia errada e subvalorizada fazendo o que amava, os métodos comportamental e ontológico também entraram num dos planos móveis paralelos. Olhando de fora, nos últimos dez anos, parecia que eu tinha três profissões diferentes ao mesmo tempo. Por dentro, era tudo junto – tudo integrava meu papel autoral.
Quando entendi que autoralidade é diferente de protagonismo, a Incipit nasceu. Quando integrei os ofícios experimentados, percebi que eles faziam sentido no vivido e não no idealizado. Entendendo que no meu “tudo junto” havia uma estrutura, com valor estético e de troca, compreendi que eu estava infeliz antes pela ilusão da “narrativa da protagonista de sucesso”. E eu só percebi isso em coletivo. Não foi sozinha. À primeira vista, pode parecer que autoralidade é individualista e egocêntrica. Mas foi só sendo membro de grupos que fui compreendendo meu papel autoral. Isso porque num grupo não podem ser todos protagonistas – o coletivo pode ser protagonista num trabalho ou numa causa, mas seus membros desempenham diversos papéis pra que isso aconteça (líder, observador, executor, articulador etc.) Ah, e esses papéis são móveis também, dependendo da situação que se impõe e das relações que se estabelecem. – parênteses: percebe a semelhança com a realidade que estamos atravessando juntos?
É o autor que define quem entra ou sai de cena. O protagonista, não. Na história, ele será sempre o foco. O autor maneja e experimenta papéis, foco narrativo, ritmo, estilo. O protagonista não tem muita escolha além de protagonizar. E protagonizar em todas as histórias é extremamente cansativo. O papel autoral mobiliza sua criatividade, disciplina, revisão de si e responsabilidade para propor algo para os demais, que também considera autores. O olhar desses outros que recebem o que propomos nos dão indícios se nossa semente lançada é fértil ou não. Nada é fértil em si mesmo. Nossos fazeres autorais são potencialmente férteis. É na ação propositiva e nos encontros que nossa criação pode se expandir e se tornar existência.
Isso significa que o papel autoral não é o todo-poderoso, não tem controle de tudo, nem vive o “felizes para sempre” com seu viver e fazer. O papel autoral se dedica a dar existência a algo que pulsa em si. E a existência depende de condições favoráveis e de encontros (bons e maus).
A Incipit encontrou esse cenário propício à existência em 2016. Amparada por um círculo de mulheres empreendedoras que ganhou o nome Põe no Mundo no meio do processo. Depois de muitos encontros e trocas de saberes que vivi com aquelas mulheres, fui gestando o que seria o “projeto Incipit – para começo de história”, que envolvia tudo que estava na bagagem de ofícios e conhecimentos vividos e aprendidos. Eu não criei um grande alvo a alcançar com o projeto, eu só queria que ele existisse. E ele existiu, se transformou, tornou-se meu plano A, expandiu verticalmente e segue vivo, integrando novas experimentações/conhecimentos, sendo nutrido com o mesmo amor com que foi gestado.
Incipit nasceu ariana com verbo latino imperativo no nome que significa “começa”. Não foi à toa. Ela me trouxe a parte da ação propositiva que faltava para viver meu papel autoral (dentre outros tantos papéis). Ela me lembra de retomar o movimento, nutrir a vida quando tudo em volta parece parar. “Começa, por dentro.”
O que, neste período, você quer começar?