Para ampliar repertório
São Paulo, 31 de maio de 2021.
Olá!
Então, é isso: chegando em junho, estamos todas/os exaustas/os de Brasil, desgoverno, anywhere office (receita perigosa de substituição do "viver" por "trabalhar"), notícias pandêmicas preocupantes... E o que mais? Respiro. Incluo outras queixas e também um pacote de alegrias nas entrelinhas, porque a vida tá acontecendo aqui com a complexidade que a define bem. Tanto que o tempo da última carta pra cá foi mais espaçado... No fim de março, escrevi aqui sobre propostas para o fazer autoral e trouxe o Ítalo Calvino e o Ricardo Piglia pra conversar e te contar que andei revisando minhas referências (meu influenciadores de formação) e me dei conta de um chamado interno: ampliar meu repertório. Na carta, conto como o Piglia (argentino/latino-americano/no início dos anos 2000) ampliou a discussão dos valores literários (da escrita e..., por extensão, da expressão da vida) do Calvino (italiano/europeu/nos idos dos anos 1980), trazendo a responsabilidade, a noção de verdade e o caráter político da literatura pra superfície. Reconhece alguma semelhança desses valores com outras manifestações da linguagem hoje, << Test Nome >>? Então...
O que mais me fascina na literatura e na crítica literária é a capacidade de antecipar tendências a partir de diálogos com escritos e referências passadas somado a um trabalho criativo com imaginação. Pra mim, é bem louco pensar que as propostas do Calvino, da década de 80, eram muito atuais até 5 anos atrás e as do Piglia estão visíveis hoje. E o que isso me ensina sobre ampliar repertório? Primeiro, que não necessariamente se trata se fazer um movimento novo, rumo ao desconhecido, disruptivo (como é valorizado hoje nos discursos de inovação); segundo, que é preciso atentar para os diálogos entre diferentes vozes (quem fala? com quem fala? que tema/elemento/citação puxa pra continuar a conversa?...), pois através deles podemos (re)compor o repertório de uma cultura, de um determinado campo (no exemplo acima, o do literário); terceiro, que a ampliação também acontece quando a gente "remexe e reordena" nossa "combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações" (como diz Calvino na proposta Multiplicidade) e que, para isso, é fundamental criar e manter uma estratégia de conhecimento pessoal (o que a Mari Jatahy explica aí pode gerar vários insights pra você).
Assim, fiz as pazes com a base de pouca latinidade que carrego até aqui, com desejo de expandir os trabalhos em torno da autoria, experimentação, aprendizagem a partir dela incluindo a diversidade que tanto busco, a aplicação na prática e também a construção de pontes entre o passado e o futuro/entre a academia e a sociedade/entre repertórios individuais e impacto no coletivo. Por isso, trago aqui outra referência voz de outro escritor francês pra ampliar o olhar para o repertório: Michel Butor (1926-2016). É daqueles que escreveu na fronteira entre gêneros textuais, metatextos, escrita experimental e crítica reflexiva (coisa que admiro pra caramba) e foi premiado por isso. Seu compilado de ensaios Repertório (na tradução de 1978; no original, de 60 e 64) é um deles, que traz quase que um suporte de estudos dele em torno do romance (como pesquisa, como técnica e gênero), sua curadoria de escritores (com quem dialoga), suas reflexões sobre a relação entre ele e o livro, a crítica, o leitor... Na última parte, sobre Crítica e Invenção, ele escreve algo que clareia muito o que entendo como ampliação de repertório com curadoria, ou seja, o trabalho de mapear, selecionar e organizar um conjunto de focos importantes para se ver ou criar algo que seja realmente novo. Ele diz:
"O inventor pede socorro a determinados inventores do passado, mostrando ao mesmo tempo até que ponto nós os conhecemos mal, indignando-se de que tenhamos sido tão incapazes de ouvir suas lições.
Na leitura dos livros antigos, descobrimos não só que há coisas de que eles não falam (assunto novo) - eles sabiam falar-nos de algumas das quais não nos falam mais (assunto reencontrado), eles tinham modos de falar que não se utilizam mais (técnica reencontrada) -, mas também (técnica nova) que há modos de falar que eles não utilizam, que não se tirou tudo o que se podia tirar desse arsenal de palavras e de formas.
A obra atual nos revela a fecundidade mal conhecida do passado; ela só pode mudar verdadeiramente o futuro se ela mudar o conjunto da história. A marca de uma profunda novidade é seu poder retroativo." (Butor, Repertório, p. 196)
Será que daria para aplicar esses quatro elementos na ampliação de repertório? Fica aqui o convite (pra mim também).
Investigando seus próprios arquivos e sua bagagem de conhecimentos e experiências:
[assunto novo] - Consegue encontrar assuntos novos?
[assunto reencontrado] - Reencontra assuntos que podem ser atualizados?
[técnica reencontrada] - Relembra modos de pensar/fazer/expressar que podem ser fontes de inspiração ou de atualização?
[técnica nova] - Encontra modos de pensar/fazer/expressar que não havia se dado conta antes e que pode utilizar agora?
Se você também fizer esse exercício, me conta o que aconteceu por aí? Para onde as perguntas te levaram? Vou ficar bem feliz de saber como essas coisas todas que conto (ou convido) chegam para você!
Com carinho,
Carol
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