O que a gente faz com a linguagem além de se comunicar, ler e escrever? Não foi exatamente essa pergunta, mas alguma outra formulada com uma mistura de indignação e desejo uns doze anos atrás que me moveu nesta busca um tanto teimosa de encontrar uma ponte do mundo acadêmico das letras com a vida e o mundo do trabalho. Convivo com essa pergunta até hoje. E tem um autor que sempre atiça ela: o Roland Barthes.
Ontem, no recomeço do curso de Ontologia da Linguagem, no Appana Território de Aprendizagem , a Tatiana Schunk trouxe uma citação dele do Fragmentos de um Discurso Amoroso (1977) que fala sobre o eu-te-amo como ação, troca ativa e consciente com o mundo, que demanda atitude de volta.
O amor como projeto íntimo do que queremos saber e fazer de verdade nesta existência. Penso que escrever é só uma das ações em resposta às provocações e buscas a que ousamos dar ouvidos. O eco do Barthes através do encontro e da fala da Tati me lembrou do artigo “Autoria em regeneração: Barthes e o potencial da linguagem”, que escrevi como uma declaração de amor a esse tema (sem um pingo de romantismo nisso). Amor como compromisso com um projeto que, de tanto me importar, às vezes guardo só pra mim ou comento com quem passa aqui na Incipit Hub.
Mas o que eu queria mesmo é que esse texto não ficasse nos arquivos da revista acadêmica, e sim que fosse lido por quem também se faz essas perguntas sobre linguagem e autoria. Então, compartilho um pouco dele aqui pra te mostrar e, quem sabe, ver também o que surge por aí a partir disso tudo.
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É senso comum pensar a linguagem como objeto que usamos a serviço de algo: escritor/a para escrever, jornalista para comunicar e informar; professor/a para ensinar, etc. Roland Barthes (1966) lembra um dos princípios importantes da linguagem que refuta esse lugar-comum utilitário:
“[...] a linguagem não pode ser considerada um simples instrumento, utilitário ou decorativo, do pensamento. [...] Jamais atingimos um estado em que o homem estivesse separado da linguagem, que elaboraria então para “exprimir” o que nele esse passasse: é a linguagem que ensina a definição do homem, não o contrário.”
Roland Barthes, em “O rumor da língua”
Ou seja, a linguagem não é só descritiva. Esta visão da linguagem como ação, que Barthes apontou naquele texto de 1966 e em seus seminários, reverbera também no início dos anos 70 no Chile, com o conceito de autopoiese de Humberto Maturana e a explicação de como se dá o fenômeno do conhecer, ou seja, como o ser humano se define, cria e modifica por meio de sua organização, comportamentos, ideias - o que passa necessariamente pela linguagem.
“O mundo das descrições e explicações do observador é um mundo de modos de convivência gerador de objetos perceptivos, no qual o observador surge como um deles ao surgir a linguagem [1978]. Daí a potência geradora e transformadora do mundo que têm a linguagem e as explicações que nela se dão.” [1987]
Humberto Maturana, em Ontologia da Realidade
Assim como o conceito do observador de Maturana, o autor também pode ser lido como um papel que surge da linguagem e nela opera, coordenando seu viver, pois é a instância que decide quais ações serão realizadas e quais serão descartadas.
Nesse sentido, o autor pode ser entendido como instância que intervém e manifesta o verbo que usa. E esse fazer não é restrito ao escrever, mas a qualquer verbo que implique sua subjetividade e singularidade –, aproxima-se desse observador de Maturana, que coordena ações e gera mundos a partir da linguagem.
Maturana propõe o verbo “linguajear” para se referir ao ato humano de estar na linguagem. Então podemos brincar com o verbo “autorar” para definir a prática de quem, como autor, dedica-se a um ou mais fazeres que imprimam traços da construção de si: seu estilo, seu ethos, sua ética.
No artigo “Autoria em regeneração: Barthes e o potencial da linguagem”, publicado na Revista Criação & Crítica, edição 30, de 2021, investigo esse “autorar” como ética em Roland Barthes, professor, semiólogo, escritor e filósofo que é referência fundamental para pensar o que é ser autor ainda hoje.
Nesse artigo, revisito a questão da autoria através da narrativa do que se faz com a linguagem, para além de ler e escrever. Proponho a autoria como uma qualidade de disposição e ação. E que é por meio dela que potencializamos a composição da nossa vida.
Sugiro uma ética da autoria, que inclui esse processo de construção da autonomia, através da reintegração da subjetividade, sem se encaixar em contornos impostos, nem a obrigação de repetir modelos ou mestres.
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Me conta como essa forma de entender a linguagem e a autoria reverbera por aí? Como você se vê em relação a sua própria linguagem?