Quando a voz autoral pede fôlego
São Paulo, 29 de fevereiro de 2020.
Como você está? Depois da primeira carta, você teve pistas da qualidade da sua intenção no seu fazer? A intenção é o que ajusta o grau das nossas lentes para perceber o que acontece... Por aqui, comecei fevereiro escolhendo concentração como "mote" - afinal, o mês mais curto do ano com feriado prolongado já espreme nossa relação com o tempo, não é mesmo? Bom, lá fui eu praticar e me investigar em concentração de fazeres... Calma, que eu prometo que esta carta não é sobre o poder do foco, nem traz dicas para evitar dispersão e te forçar a produzir mais.
Na verdade, esta carta é pra te convidar a refletir junto sobre um dos efeitos da concentração do fazer: a falta de fôlego. Concentrar todos os esforços a serviço do outro, em entregas e atender prazos, ou seja, no FAZER, pode tirar o fôlego para FALAR SOBRE o que se faz. É como acontece na corrida (se tem uma atividade que me ensina sobre fôlego é essa): não dá pra correr e falar ao mesmo tempo, você só se concentra em correr, respirar e cuida de manter um ritmo confortável para o corpo seguir em movimento. Eu quis trazer essa metáfora da corrida, porque muitas vezes a falta de fôlego na voz autoral é interpretada equivocadamente como falta de criatividade. O que percebo, tanto na minha prática quanto na de outros fazedores autorais, é que a "falta de fôlego" para FALAR SOBRE o próprio trabalho, divulgá-lo e ter ideias de conteúdos que expressem sua voz autoral é fruto do excesso de concentração no FAZER.
A pessoa fica tão imersa no seu fazer autoral que a voz não sai, mas isso não quer dizer que ela perdeu o fôlego da sua autoralidade. Só quer dizer que ela está cansada e não sabe economizar na eficiência. Ela apenas não sabe que pode parar de "correr", recuperar o fôlego e revisitar o percurso percorrido interna e externamente na memória para perceber o que falar sobre isso. O fôlego da autoralidade só é perdido se nos esgotarmos na "corrida", exaurindo as forças do fazer - e esse excesso, sim, é perigoso, pois nos incapacita, levando à fadiga física, mental e emocional...
Para retomar o fôlego da voz autoral, é preciso aproveitar o tempo da "corrida" (fazer) e o do repouso. É num repouso contemplATIVO que se pode perceber a inspiração que emerge pós-cansaço. Quem diria que essa falta de fôlego poderia abrir espaço para algo especial? No livro Sociedade do Cansaço, o filósofo Byung-Chul Han fala sobre isso:
"O 'cansado' habilita o homem para uma serenidade e abandono especial, para um não fazer sereno. Não é um estado onde todos os sentidos estariam extenuados. Desperta, ao contrário, uma visibilidade específica. Assim, Handke fala de um 'cansaço translúcido'. Permite o acesso a uma atenção totalmente distinta, acesso àquelas formas longas e lentas que escapam à hiperatenção curta e rápida. [...] Toda e qualquer forma é lenta." (Han, 2017, p.73-4)
O conteúdo da nossa autoralidade está na nossa "corrida" (ou na nossa concentração singular de fazeres, ou no nosso "cansaço translúcido"), mas a forma para expressá-la em voz autoral só emerge da lentidão, no tempo da contemplação.
Com carinho,
Carol
PS: Quero muito te ouvir pra saber como essa carta cheia de metáforas de fôlego, corrida e voz autoral chega até você. Será que essa reflexão destrava algo em você?