Quando posicionamento é deslocamento
São Paulo, 1o. de dezembro de 2020.
Espero que esta carta chegue em tempo bom por aí. Gosto quando você me responde, me contando como as palavras apareceram aí do outro lado da tela. Sabe, eu ainda carrego a ilusão de que tenho algum controle de como visto as palavras quando elas saem daqui, mas, uma vez no mundo, tenho a certeza de que, passando pelos seus olhos e ouvidos, elas se revestem e se despem de outras camadas. Isso me pega, fico aflita com alguns receios de como sou lida, mas sigo aprendendo a deixa ir, a soltar. E é bonito ver que, quando a palavra escapa daqui, alguém a pega e me responde, comenta, manda um alô, continua o texto, me questiona. Em novembro duas perguntas que vieram do lado daí conviveram comigo: uma sobre a complexidade da diferenciação no mercado, que pende entre o valor da originalidade e o do não pertencimento/aderência no mundo; e outra sobre como se manter autoral quando a gente se sente perdida/o, seja por uma fase de vida mais densa, difícil ou nova que estejamos atravessando, seja pelo cansaço temporário de algo que ainda não tem nome.
Mesmo que essas perguntas levem a temas diferentes da autoria, entendi que as duas tocam um ponto em comum: o do posicionamento. E se você recebe essas cartas há um tempo, pode suspeitar que já abri esse tema em outras correspondências, como na de agosto sobre identidade e na de julho sobre centralidade. Mas percebi algo diferente sobre posicionamento em novembro junto com aquelas duas perguntas e trago aqui este tema como mais uma chave para destravar sua voz autoral.
Pra quem empreende, posicionamento é um termo bem conhecido ligado à forma como a marca (tanto pessoal quanto a de um negócio) de fato imprime sua marca (repetição intencional) no mercado e na lembrança do público e se diferencia da concorrência. A serviço dessa narrativa do posicionamento, somos levadas/os a fazer escolhas sobre: i) a linguagem que adotamos na nossa comunicação, nos currículos, nos portfólios, nas interações, ii) sobre os lugares/canais que frequentamos e aparecemos; iii) a frequência com que nos mostramos ou não; iv) ajustar nosso modo de performar para que o outro “ideal” nos veja, nos reconheça e nos contrate. Eu sei, << Test Nome >>, que pode ser difícil ver as coisas com essas lentes menos românticas, mas sinto de aliviar, com isso, um peso que o posicionamento traz – o da cristalização, da etiqueta, do encaixe perfeito (ideal).
Assim como é importante ter clareza da centralidade do nosso fazer, percebo que, como brasileiros e latino-americanos que somos, precisamos resgatar nosso modo de operar pela periferia, pela fronteira, pela borda. Vejo nisso uma proposta de substituição do martelamento tanto de frases feitas e jargões do mercado (para pertencer) quanto de nomes de fazeres diferentões, reprodutores ou inovadores demais que ninguém entende (para se diferenciar) por umdeslocamento no entre-lugar de si com e no mundo/mercado.
Entender nossa centralidade e conseguir nos mover até nossa borda para olhá-la de viés é estratégico para ampliarmos a percepção do que desejamos criar e questionar se o mundo realmente precisa disso nesse momento – e aqui não quero exaltar uma criação utilitarista, pelo contrário. Diferentemente de grandes marcas e corporações (que vejo operar no modo mais utilitarista e reprodutor e que demoram a integrar grandes mudanças em sua cultura), para quem empreende de forma autoral, percebo o deslocamento como estratégia discursiva de posicionamento. Porque empreendedores autores são pessoas que fazem coisas para pessoas – que mudam, o tempo todo. A mudança faz parte da cultura do empreendedorismo autoral. Nesse sentido, posicionamento autoral é deslocamento.
Deslocar-se envolve reconhecer limites de si e do cenário em que está atuando e conseguir se mover. No caso da complexidade da diferenciação de mercado, inclui entender que estamos num lugar (profissional) temporário e, por isso, articular a própria linguagem com a do mundo (especificamente desse “mundo” que queremos que nos ouça) é uma habilidade importante.
Agora, quando a gente tá perdida/o, lembro da frase-mantra da Clarice “perder-se também é caminho”, que nos chama a colocar foco no percurso. Eu me perco quando me falta clareza do que pertence a mim e de onde pertenço. É me perceber em deslocamento. E isso também é autoral.
Sabe, a gente tá acostumada/o a valorizar a consistência na permanência como reforço/repetição. Mas às vezes a gente esquece que a gente muda permanentemente, e que há autoria também nessa constante. A autoria, a meu ver, não está nem na contramão, nem na conformação passiva dos contornos do mundo – nem 8, nem 80. É no deslocamento que a autoria reconhece seus limites, em relação aos contornos do mundo, que também somos nós.
Me conta se destravou algo por aí?
Com carinho,
Carol