Curadoria, criação e crítica
Propostas para o ano 7 e as práticas que caracterizam a comunicação autoral
Escrevo todos os dias. Para os outros, os textos saem na ponta dos dedos, em minutos ou poucas horas. Na escuta e na leitura atenta de alguém, com ideias e referências misturadas, a ordem do discurso e a narrativa chegam como um flash. “É isso, você traduziu o que não conseguia dizer” - é o feedback que mais recebo e gosto. Só não funciona pra mim. Demoro na convivência com uma ideia até ter coragem de escrevê-la. Talvez por isso ame tanto traduzir ideias e vozes das pessoas, por reconhecer a angústia de engavetar desejos não escritos. Ou talvez por sentir uns medos semelhantes de se ver nesse espelho de tela/papel (depois que está publicado então, já foi, palavra alada), ou de ser-ou-não-lida (aquele pesadelo recorrente de estar em lugar público pelada, sabe?).
Escrevo hoje, 23 de março, pra marcar a entrada no sétimo ano do meu incipit (em latim, “começa”, na literatura é também a palavra de identifica início de prosas e poesia). Já contei algumas vezes a origem desse projeto, que se tornou trabalho autônomo, inspirada pelas Seis propostas para o próximo milênio, do Ítalo Calvino (1985) - um livro que aponta as tendências literárias deste nosso tempo, que articula um monte de referências de ficção pra justificar os temas propostos e que é inacabado. Seu estilo e conteúdo são um ponto de partida provocador pra pensar autoria e o que podemos aprender e fazer a partir da literatura como conhecimento.
A literatura me fez amar histórias: de ficção e não-ficção, orais e escritas, pelo conhecimento que transmitem e pela capacidade de transformar a realidade.
Comunicação autoral é o jeito que encontrei de conviver e trabalhar com essas histórias com uma proposta para o mercado/sociedade que hoje descrevo assim:
Comunicação autoral é menos uma definição e mais uma reivindicação: de conservar o comunicar como criação de algo comum e o autoral como qualidade de um fazer humano que passa pelas habilidades e exigências da escrita.
Mas hoje não queria trazer ‘o quês’ nem ‘por quês’ dessa abordagem. O desafio é escrever ‘como’ fazer. Porque não se trata de um método fechado, com passos em ordem definida; e sim, de propostas que mobilizam quem faz comunicação autoral a ler e escrever com uma abertura à ressonância com o sujeito/objeto lido e escrito. Para lidar com o desconforto da voz autoral. Ouvi recentemente sobre essa estranheza de se torna autora/autor como “processo de aprender a tornar pensamento em palavra”. Parece simples: só pensar, sentar e escrever, mas não. Tornar-se autora exige um esforço intencional de aprender com o processo e desenvolver habilidades e condições pra isso.
De uns dois anos pra cá, reconheço três práticas que compõem a comunicação com qualidade autoral: curadoria, criação e crítica.
Curadoria
“Liga o radar e pesquise.”
A primeira vez que escrevi sobre curadoria foi sobre seus desafios e, desde então, esta é a qualidade dessa prática por aqui. Cada vez mais complexa pelo excesso de apropriação depois de virar buzzword, a curadoria foi se misturando ao universo da pesquisa e organização de acervos/conteúdos/conhecimentos, campo que conserva o rigor metodológico de pesquisas quali e quantitativo, ao mesmo tempo que também foi tomando conta de outros campos de branding e marketing, que valorizam e somam capital social à reputação do curador (ou marca curadora), integrando uma narrativa de marca.
Vejo o campo da aprendizagem, em que atuo (mais especificamente, aprendizagem de adultos em organizações), ocupando a fronteira entre os dois universos. O lugar entre a academia e o mercado, entre a academia e a sociedade. Dependendo do tema, da equipe e do prazo, consigo ser mais ou menos rigorosa com o método de pesquisa, mas basicamente sigo o seek-sense-share (Jarche, 2012), que inclui as ações: Pesquisar (em múltiplas fontes fidedignas) > Contextualizar (geralmente aqui entram reuniões e entrevistas com stakeholders antes da produção de um texto em formato adequado à necessidade do projeto) > Compartilhar (que fica mais na beira do comunicação e marketing, para entender como integrar o que foi produzido dentro de uma pauta editorial institucional).
Nesse mercado da aprendizagem, vejo alguns radares de curadoria (dependendo do estilo e do projeto, um deles pode sobressair): os que valorizam fontes mais antigas, atualizam referências com leituras do presente, cotejam diferentes modos de pensar do passado para reconhecer as premissas de uma ideia ou discurso, geralmente são especialistas em uma área do conhecimento; os presentistas, que defendem a atenção às pistas da atualidade, captam rapidamente o que está rolando, escutam pessoas, mapeiam fontes recém-lançadas, levantam desafios atuais e conectam temas da contemporaneidade; os futuristas, radar mais ligado em tendências, parece que as informações chegam primeiro pra eles, geralmente orientado a dados, percebem o começo de mudanças. Não são pessoas aqui, são radares mesmo. Mas dá pra notar qual nosso é mais desenvolvido pelo tipo de conteúdo que consumimos, perguntas que nos fazemos e problemas que nos movem.
Criação
“Abra espaço para a criatividade e o contato.”
Métodos para ativar criatividade e espontaneidade existem aos montes nos mais diversos meios artísticos. Às vezes me procuram como alguém que facilita escrita criativa. Gostaria, mas não é o caso. A prática da comunicação autoral envolve reconhecer ou criar seu processo criativo para escrever. Basicamente depende de dois elementos: interesse e intenção.
Minha curiosidade com processos criativos me levou até movimentos escriturais de escritores: por exemplo, os manuscritos de Flaubert, que classificava seus espaços de criação como planos, roteiros, rascunhos e criava reelaborando a própria escrita; de Georges Perec, que desenhava em seus cadernos e fazia listas do que entraria nas suas história, sem perder o prazer de burlar as próprias regras e não cumprir o plano que definia, e Clarice Lispector, que destruía seus manuscritos depois do livro publicado… Escritos à mão, datiloscritos, digitados, minha pergunta inicial era “como grandes escritores se tornaram escritores?” - sem resposta única, a beleza foi encontrar múltiplas possibilidades de se relacionar com a página para criar.
Ano passado, visitei a exposição A Magia do Manuscrito, coleção particular do Pedro Corrêa do Lago, que exibiu 180 manuscritos originais, de literatura, arte, política, ciência e história. E manuscrito cabe de um tudo: caderno, bilhete, partitura, ficha de inscrição em clube, dedicatória em foto… São esses bastidores da criação que me convidam a criar. Porque não tá pronto, é fragmento, inacabado, é detalhe, uma intervenção num papel - não uma obra completa monumental ou um filme ou quadro que te arrebata e parece genial e inatingível. Porque:
“É um ponto difícil de admitir. Nossa criação vem de uma ética segundo a qual os outros, quaisquer outros, todos os outros são por definição mais interessantes do que nós mesmos, que fomos ensinados a ficar retraídos, a praticamente nos apagar.” - Joan Didion, Sobre ter um caderno.
Abrir espaço pra criatividade e contato do que está em processo. Ampliar o olhar para os “desmétodos” alheios para se reconectar com nosso próprio movimento autoral. Deixar um pouco os manuais de escrita de lado, as tendências da creator economy e se sensibilizar com outras expressões artísticas também. Eu não quero ser a pessoa que diz o que outra deve fazer pra criar. Quero ser a pessoa que pergunta o que te interessa criar e como quer experimentar isso.
Entrar em contato com expressões artísticas diversas ativa a sensibilidade, a serendipidade, a imaginação e a intuição. Nenhuma forma de arte é luxo:
“Se aquilo de que precisamos para sonhar, para conduzir nosso espírito de maneira mais direta e profunda rumo à esperança, for desprezado como sendo um luxo, vamos abrir mão do cerne - da fonte - do nosso poder, da nossa condição de mulher; vamos abrir mão do futuro dos nossos mundos.” - Audre Lorde, A poesia não é um luxo.
Crítica
“Perguntar, tecer hipóteses, gerar entendimento”
Qualquer tentativa de definição seria redutora. Prefiro não entrar na especificidade de estudos críticos, pra simplificar. Coloco a crítica aqui como movimento de leitura e escrita de si e do mundo que busca compreender vieses, padrões, tensões, inter-relações, modos de circulação das histórias que criamos, acreditamos, negamos etc.
Nas listas de habilidades do futuro sempre aparece “pensamento crítico”, mas ninguém explica do que se trata, nem o que seria um pensamento acrítico. A crítica inclui a habilidade de fazer perguntas reflexivas, investigativas, retóricas… e também reconhecer as lentes que usamos para fazer essa leitura, no caso, da comunicação autoral.
Como faço leitura crítica: analiso forma e conteúdo dos textos (meus e das pessoas), sinalizo ideias incompletas, repetições, incorreções. Questiono a ordem do discurso relacionada à intenção do texto. Aponto sugestões e referências que possam ampliar, rebater ou exemplificar argumentos dos textos. Discuto pontos de vista. Aprecio pensamentos bem articulados, aprendizados gerados, reconhecimento da voz autoral (coerência entre o que a pessoa diz, escreve e pratica).
O movimento da crítica é sobre problematizar para gerar entendimento. É essa prática que questiona a curadoria e a criação em processo, revela falhas e destaca achados. Pra mim, é ela que torna os conhecimentos e as obras inacabadas.
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Curadoria, criação e crítica é a tríade da comunicação autoral neste ano 7. Quis registrar aqui enquanto tudo isso ainda é feito artesanalmente: sem ferramentas de copy, sem apoio de IAs, sem pedido externo. Talvez o próximo texto conte com um coautor artificial. Chego um pouco atrasada nessas novidades - conscientemente. Ainda aprendo em atrito com os próprios pensamentos, sem atalhos e investindo um tempo pra escrever sozinha. Convido você a se encontrar na sua escrita demorada também.